*** Obrigado pela visita! *** Deixe um comentário *** Envie fotos, histórias, causos, etc... para publicação - Enviar no email: pedroornellas1@yahoo.com.br ***

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A Trova no Folclore

A TROVA NO FOLCLORE
"Há trovas que o povo canta,
outras que o povo esqueceu.
O povo traz na garganta
o canto que tem por seu"!
José Coutinho de Oliveira
1. Afinal, o que é Trova?
Sempre que participo de qualquer atividade envolvendo a Trova, seja como palestrante, oficineiro ou coisa parecida, minha primeira pergunta aos participantes é:
- Vocês sabem o que é uma trova?
A resposta, na maioria das vezes, é: - Não. Mudo de estratégia e indago:
- Alguém entre vocês conhece uns versos que dizem: “Batatinha quando nasce...”
É o bastante para a platéia, em uníssono, completar os três versos restante da trova mais popular do Brasil:
“Batatinha quando nasce,
esparrama pelo chão.
A menina quando dorme,
põe a mão no coração”.
Em seguida inicio outra trova não menos popular recitando:
“Quando eu era pequenino”... obtendo igual reação dos presentes que, a partir daí, não só ficam sabendo o que é uma trova como até recitam outras que sabem de memória.
Esse aparente desconhecimento, por parte do povo, do que seja uma trova, decorre do fato da quadra setissilábica, isto é, da composição de quatro versos fixos se sete sílabas fônicas ou poéticas, rimados entre si e de sentido completo, só receber a denominação específica de “trova” no Brasil. E mesmo assim de uso relativamente recente, já que foi a partir de 1903, com a publicação em Portugal do livro “Mil Trovas Populares Portuguesas”, com grande repercussão no Brasil, que o termo popularizou-se entre nós, adotado principalmente pelos trovadores autênticos, ou seja, pelos cultores da trova intencional ou literária.
No mundo hispânico a mesma quadra recebe várias denominações tais como: copla, cantar, cuarteta, cantiga, canto, cante, etc. Em Portugal, de onde ela embarcou com os primeiros colonizadores, continua sendo chamada de quadra popular ou simplesmente quadrinha.
No nosso caso e para os nossos propósitos, entendamos por trova a definição adotada pala União Brasileira de Trovadores, assim enunciada: “Composição poética de quatro versos setissilábicos, rimando, pelo menos, o 2º com o 4º verso e tendo sentido completo”. Exemplo:
“Lá vai a garça voando
com as penas que Deus lhe deu.
Contando pena por pena,
bem mais penas tenho eu”.
2. Antiguidade e Permanência da Trova
A trova, ou como quer que seja chamada a quadra setissilábica de sentido completo, vem sendo composta e repetida pelo povo há, pelo menos, mil anos. Anterior, portanto, às modernas línguas neolatinas. A grande dificuldade para quem a estuda é a falta de documentação, de coletas no seio do povo, já que a produção literária de cunho popular foi e continua sendo, salvo raras exceções, considerada inferior e indigna de registro. Desse modo, vestígios de sua existência em tempos remotos nos foram transmitidos indiretamente através de obras literárias, do teatro e de velhas canções.
Em 1812/15, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm publica- ram uma coletânea de contos populares alemães, revelando ao mundo a imensa riqueza contida nos contos, cantos e arte em geral guardada pela memória coletiva. A partir daí o interesse pela trova e por outras manifestações populares chamaram a atenção de estudiosos que passaram a ocupar-se do assunto, surgindo, assim, não apenas o termo “folclore”, criado pelo antiquário inglês W.J. Thoms, em 1846, reunindo as raízes saxônicas folk, (povo) e lore, (saber), para designar a sabedoria popular, como o próprio surgimento de uma nova ciência.
O primeiro levantamento de trovas folclóricas que se tem notícia, foi realizado na Espanha em 1859 por Fernan Caballero, pseudônimo de Cecília Bohl de Faber Larrea, denominado “Cuentos y Poesias Populares Andaluces”. Em 1867 vem à luz a primeira coletânea de trovas populares portuguesas, o “cancioneiro Popular”, realizada por Teófilo Braga que além de publicar, em 1869,“Cantos Populares
do Arquipélago Açoriano” contribuiu com a publicação da nossa primeira coletânea de trovas folclóricas, organizada por Silvio Romero e editada em Portugal no ano de 1883. Daí em diante multiplicaram-se os cancioneiros populares trazendo em suas páginas milhares de trovas populares colhidas no meio do povo, tanto no Brasil quanto em Portugal e em outros países do mundo hispânico.
3. A trova, gênero popular por excelência
“Quem conta um conto, aumenta um ponto”, reza o dito popular. Às vezes aumenta, outras vezes diminui. Esta é a sina das manifestações populares transmitidas oralmente através das gerações. E o que ocorre com o conto popular e com as cantigas de roda que ganham cores e sotaques diversos no tempo e no espaço, acontece, também, com a trova. Vejamos o caso desta que em menino escutei do meu avô José Abdon, no município de Afuá, ilha do Marajó:
“Atravessei sete baías
em cima de uma tigela
arriscando minha vida
por causa de uma donzela.”
Em 1998 fui encontrá-la num ”varal de trovas” realizado por alunos da escola municipal Walter Leite Caminha, no bairro do Benguí, com pequenas modificações. Assim:
“Passei por sete baías
no fundo de uma colher
arriscando minha vida
por causa de uma mulher.”
Um ano depois, quando ministrava oficina de literatura na escola municipal Solerno Moreira, no bairro da Terra Firme, a encontrei no caderno de um estudante com esta grafia:
“Atravessei sete baías
agarrado num barbante
arriscando minha vida
por causa de uma estudante.”
Após quase meio século da versão dita pelo meu avô, às margens do Cajari, e as versões escritas pelos garotos da perife- ria de Belém, percebe-se pequenas mudanças ocorridas no primeiro e no segundo versos, mantendo-se inalterado o terceiro e trocando a última palavra do quarto que passou de donzela para mulher e, finalmente, para estudante, termo mais adequado ao universo estudantil. Aí cabe a pergunta: onde, quando e por quem ela foi escrita pela primeira vez? Seria, na sua origem, brasileira, portuguesa, espanhola? Essas perguntas certamente não terão respostas. São justamente essas interrogações e a maneira como chegaram até nós que tornam uma trova popular, que a credenciam como “trova folclórica” por atender, de imediato, dois componentes básicos: a transmissão oral e a intencionalidade.
O fenômeno de popularização de uma trova se dá por vários fatores. Um deles é o fato dela ser composta em versos de sete fonemas, os setissílabos ou redondilhos, encontrados fartamente nas composições populares como nos adágios e nas expressões populares, rifões e frases feitas do tipo:
"Água mole em pedra dura,
tanto bate até que fura".
“Valei-me, Nossa Senhora!”
“Minha vida é um livro aberto.”
A rima é outro componente que facilita a memorização e tão popular quanto o redondilho, muito utilizado em atos públicos como passeatas e competições esportivas, senão vejamos:
“Um, dois, três,
tal time é freguês!”
“O povo, unido,
jamais será vencido!”
O número de versos, apenas quatro, condensando uma idéia acabada, também é outro fator para ser levado em conta. Isso sem falar na mensagem e na linguagem simples, coloquial, sem rebuscamentos. Já o anonimato decorre do fato de quem diz uma trova, ou outra composição qualquer, raramente declina do nome do autor. Muitas vezes por desconhecimento da autoria, outras vezes por esquecimento ou propositalmente para que a tenham como obra sua. Eu mesmo já ouvi pessoas dizendo trovas de minha autoria com pequenas alterações e sem que meu nome fosse citado, fato que não me aborrece nem me preocupa por saber que este é o destino comum de todas as trovas: perder a autoria quando cai na boca do povo.
4. Características da trova folclórica
As trovas populares ou folclóricas, pelo fato de serem transmitidas oralmente, muitas vezes por pessoas que desconhecem técnicas de versificação e rima, apresentam imperfeições nem sempre percebidas por ouvidos pouco atentos a esses detalhes.
a)Esquema de rimas simples: apenas o segundo verso rimando com o quarto:
“Eu estou de mal contigo,
nunca mais quero te ver
e os beijos que tu me deste,
eu quero te devolver!”
b)Rimas imperfeitas: exemplo: rimar, ao mesmo tempo, palavras no plural e no singular:
“Napoleão com sua espada
conquistou sete nações
e você, com seu jeitinho,
conquistou meu coração.”
c) Versos com mais ou menos de sete sílabas fônicas:
“A flor pra ser bonita - (6 sílabas)
não precisa de duas cores - (8 sílabas)
o homem pra ser feliz - (6 sílabas )
não precisa de dois amores.” – (8 sílabas)
4 . Trovas bipartidas, isto é, a ideia dos versos iniciais não corresponde com a dos versos finais. Exemplo:
“Lá vem a lua saindo
por detrás da samaúma;
tanta morena bonita,
minha rede sem nenhuma...”
5. A Trova nas manifestações populares
A trova, como já foi dito, está presente num grande número de manifestações folclóricas.Assim é que a encontramos nas brincadeiras de roda:
“Ciranda cirandinha
vamos todos cirandar,
vamos dar a meia volta,
volta e meia vamos dar.”
Nas adivinhas:
“Fazendo muito espaçosa
cheia de gato miúdo;
a dona é moça formosa
e o dono é homem sisudo.”
Nos trava-línguas:
Se o Papa papasse papa,
se o Papa papasse pão,
o Papa papava tudo,
seria um Papa papão.”
Seria cansativo, senão impossível enumerar todas as manifestações populares onde a trova se faz presente, dos folguedos às festas religiosas, da culinária à medicina popular, das sátiras políticas aos registros históricos, como nesta trova que ouvi do meu avô sobre a guerra do Paraguai:
“A ponte de Itororó
é cheia de geringonça:
jacaré é cumê de nêgo,
e nêgo é cumê de onça.”
Entre as satíricas, lembro desta muito conhecida sobre o ex-governador do Rio de Janeiro, Ademar de Barros:
“Adão foi feito de barro,
de barro bom e batuta
mas esse Ademar de barros,
ó barro filho da puta!”
6. A Trova no folclore secreto
Há trovas que já nascem anônimas pela própria natureza, isto é, pela maneira como são escritas e ao que se propõem. O tipo mais comum são as chamadas “trovas de latrina” escritas nas paredes dos banheiros públicos do mundo inteiro. Esse tipo de trova mereceu pesquisa de Eno Teodoro Wanke, estudioso do gênero, resultando, após anos de coletas em vários países, na publicação do livro “Neste Lugar Solitário”, título que outra coisa não é senão o primeiro verso da trova mais conhecida no gênero:
“Neste lugar solitário
onde a vaidade se apaga,
todo covarde faz força,
todo valente se caga.”
Na parede de um mictório cuja água, destinada à limpeza dos recipientes, era lançada por um cano de ferro com pequenos orifícios mas que devido ao desgaste dos mesmos, acabava molhando os usuários, o escritor Humberto de Campos colheu esta pérola:
“Isto não é mictório,
isto é uma coisa indecente:
a gente não mija nele,
ele é que mija na gente!”
Quando estudante de filosofia na Universidade Federal do Pará, encontrei na parede de um sanitário do Básico I, esta versão de uma das trovas mais populares no gênero e que pelo emprego do “cá” em vez do “aqui”, parece ser uma versão portuguesa. Ei-la:
“Todos cagam cá na Terra,
cagar é lei do universo;
cagou Dom Pedro na guerra
e eu caguei neste verso.”
Outro tipo muito popular são as chamadas “versalhadas”, composições em quadras, manuscritas ou datilografadas sem autoria e que circulam de mão em mão até praticamente desfazerem-se pelo manuseio. Entre as mais conhecidas estão as comparações entre o rico e o pobre e os horóscopos em versões homem x mulher. Aqui, algumas dessas quadras mais “comportadas”:
Rico correndo, é atleta,
pobre correndo, é ladrão;
ovo de rico é testículo,
ovo de pobre, é culhão.
Casa de rico é palácio,
casa de pobre é maloca.
Piroca de rico, é pênis,
pênis de pobre, é piroca.
( Do livro: A Trova no Brasil, no Pará e no Folclore, edições Papachibé, Belém.

Um comentário: